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Uma linda camisolinha!

Foto de / Photo by Matilde Viegas.

Sou aquela pessoa que olha para uma travessa de aletria e pensa: “Isto dava uma linda camisolinha!”. Depois sou ainda alguém que há cerca de oito anos, quase por impulso, comprou uma máquina de tricotar, uma Brother KH940 (um dos últimos modelos produzidos pela marca japonesa, já com sistema de padronagem digital). Antes de tudo isso, já gostava de tricotar à mão, com lã (a lã não me pica!) e tinha dificuldade em seguir modelos de tricot sem acrescentar um ponto ou dois, sem modificar isto ou aquilo, sem experimentar fazer mais comprido ou mais curto, mais largo ou mais justo. Uma máquina parecia-me uma bela promessa de produzir mais rapidamente as muitas ideias que me vinham à cabeça!

A Oficina das Malhas é, pois, um projeto “artesanal”, no sentido em se trata de uma produção de pequena escala muito longe dos parâmetros industriais: há uma máquina, mas, além de esta não trabalhar sozinha, fica ainda muito por resolver à mão. É um pequeno negócio adaptado às suas circunstâncias de produção. O que convida a alguma reflexão…

O tempo é o único recurso rigorosamente limitado e por isso o único recurso que sobrevive à especulação de tudo o que nos envolve!

Qualquer pessoa que nos dias que correm se proponha tentar ganhar a vida com um trabalho de produção artesanal depara-se com uma série de equívocos, o maior dos quais é certamente o que se prende com a desvalorização do trabalho manual, perante a qual a apetência recente pelo feito à mão é só mais uma manifestação perversa. A maior parte das vezes, quando não se confunde “feito à mão” com “mais barato”, não há sequer noção da quantidade real de horas de trabalho por detrás dos produtos artesanais que se compram.

Convenhamos, o trabalho de produção manual é o oposto da especulação burocrática a que a maior parte de nós estamos habituados no setor terciário. Temos pouca noção da ligação profunda da produção artesanal ao tempo e do tempo como único recurso rigorosamente limitado.

Tendo em conta este “registo de produção”, e para perceber em que ponto do eixo entre o puro diletantismo (por vezes ingénuo, por vezes dissimulado) e as grandes marcas de moda me queria e podia posicionar, houve que fazer uma avaliação atenta de propostas semelhantes em que se revelou que muito se peca por omissão e o ruído das hashtags em voga é mais vezes do que seria desejável usado para encobrir aspetos tão fundamentais como a origem da matéria-prima e dos seus processos de produção ou a verdadeira remuneração da mão de obra. Por muito difícil que seja é fundamental distinguir a informação da propaganda!

Que sentido faz trabalhar de graça ou aliciar outros a trabalharem em troca de tão pouco quando esse mesmo trabalho implica deveres que se não forem devidamente salvaguardados podem facilmente anular os seus benefícios? Para que serve investir horas de trabalho num produto de fraca qualidade? Qual a lógica de competir pelo preço com as grandes marcas de vestuário?

Até à atual omnipresença das malhas baratas, as máquinas de tricotar domésticas eram, à semelhança das máquinas de costura, uma ferramenta de apoio a uma economia familiar, permitindo produzir vestuário a preços acessíveis e adaptado ao gosto, morfologia e orçamento de cada um!

Esta coleção da Oficina das Malhas… Ou melhor, esta coleção “em aberto” da Oficina das Malhas é sobretudo o projeto de produzir peças de malha num registo de indústria doméstica com matéria-prima 100% natural, produzida em Portugal de uma forma não só ecológica como também eticamente responsável, num formato de comercialização do produtor ao consumidor, de forma a evitar custos que encareçam as peças para lá de um valor que – embora elevado para os nossos padrões atuais – não implique qualquer tipo de especulação e possa assim estar ao alcance de um maior número de interessados.

Depois de testados fios, “desenhos” e moldes e de muita prototipagem, a minha fotógrafa favorita, Matilde Viegas, aceitou o desafio de se juntar a mim e à Inês num dia de Inverno soalheiro na praia de Francelos. Et voilà!

I am that kind of person that looks at a dessert and thinks: “This would make a nice little sweater!”. Then I am also someone who, almost eight years ago, pretty much on an impulse, bought a knitting machine, a Brother KH940 (one of the last models produced by the Japanese brand, with a digital patterning system). Before all that, I loved hand knitting wool (It’s OK. Wool doesn’t bite me!) but had a hard time sticking to knitting patterns’ instructions without adding something different, modifying this or that, trying to make it longer or shorter, wider or narrower. A machine seemed like a beautiful promise to produce faster the many ideas that came to my mind!

Oficina das Malhas (Knitting Workshop) is, therefore, a craft project, meaning: a small-scale production far from an industrial setting: yes, there is a machine, but not only does it not work on its own as there is also a lot of work to be done by hand. It is a small business adapted to its production circumstances. Which makes me think …

Anyone nowadays who tries to make a living from craft is faced with a series of questions, the most important of which is the depreciation of manual labor. The recent obsession with hand-made products is just a twisted evidence of this same problem! When “handmade” is not confused with “cheaper”, there is no idea of the work hours behind the handcrafted products people buy. On the other hand, many small brands, craving visibility, or improvising solutions – such as using quasi-voluntary labor – embark on this same misunderstanding, perpetuating a vicious cycle of depreciation, despite their apparently opposed agenda!

Let’s face it, manual production work is the opposite of the bureaucratic speculation that most of us are used to in the tertiary sector. We have little or no idea of the deep link between craft and time and time is the only strictly limited resource we deal with.

Considering the dimension of a craft business I had to figure out where I wanted to be between pure dilettantism (sometimes naive, sometimes disguised) and the big fashion brands. I’ve soon realized the noise of the trending hashtags eventually gets too loud and hides fundamental questions like where did the raw material came from or how fairly is the work force being paid. It was difficult to tell the information from the propaganda!

What sense does it make to work for free or to entice others to work in exchange for so little when working entails duties that, if not properly safeguarded, can easily overshadow its benefits? What is the purpose of investing hours of work in a poor-quality product? What is the logic of competing for price with major clothing brands?

Oficina das Malhas knitwear pieces are made in a crafty, small scale production with 100% pure Portuguese wool, environmentally sustainable and ethically responsible, from producer to consumer, avoiding mediation costs to achieve the best price for the right consumers.

After testing yarns, “drawings”, patterns and a lot of prototyping, photographer Matilde Viegas accepted the challenge to join me and Inês on a sunny winter day at Francelos beach! Et voilà!

Curso de Tricot à Máquina

O Curso de Tricot à Máquina está dividido em 3 módulos autónomos, cada um dos quais com a duração de 4 sessões de 3 horas e é ministrado no Atelier de Costura Portuense no Porto.

Não é obrigatória a frequência de todos os módulos, nem a frequência sequencial dos mesmos. Ou seja, é possível começar e interromper o curso e retomar mais tarde.

A formação inclui contacto direto com as máquinas, fios para executar experiências, amostras e pequenas peças, manuais para apoio teórico à formação prática e instruções pontuais para a execução de pontos de fantasia e de projetos.

De forma a garantir o melhor aproveitamento, são abertas apenas 3 vagas para cada turma e no Atelier disponibilizamos máquinas Brother e Empisal/Knitmaster. Para quem tenha já outros modelos de máquina, é ainda possível tirar partido da formação, uma vez que muitos dos procedimentos técnicos são comuns a quase todas as máquinas, ou eventualmente trazer a máquinas em questão para as aulas de forma a familiarizarem-se desde logo com o seu próprio equipamento.

Para mais informações, enviar email para costuraportuensetrico@gmail.com ou oficinadasmalhas@gmail.com.

Meias de lã

Um par de meias tricotadas conta-se entre os mais antigos vestígios de peças de malha e ainda hoje o desafio de tricotar uma meia desperta a curiosidade e a determinação de todos os entusiastas do tricot.

Uma meia é realmente uma pequena peça de engenharia do tricot e numa máquina com dois leitos podem-se tricotar em circular, tal como se faz no tricot manual, produzindo um cano de malha sem costuras. O processo não é particularmente complicado, mas é um pouco laborioso e a utilização dos dois leitos em simultâneo impede a introdução de pontos de fantasia, embora estes não estejam fora de questão se as meias forem tricotadas em plano, apenas com o leito superior da máquina.

A produção de meias tricotadas foi um dos tipos de peças de vestuário mais procurados desde o início da industrialização do setor têxtil (que se confunde com os primórdios da industrialização, tout court!), uma vez que era um acessório que dificilmente poderia ser produzido em tecido ou em pele animal sem perder a adaptabilidade ao corpo humano que a malha oferece. A necessidade aguça o engenho e uma das primeiras máquinas de tricotar a conhecer uma versão doméstica foi uma máquina circular para tricotar meias. Por volta de 1878, a firma inglesa Jaeger tinha mesmo uma instrutora para formar senhoras que quisessem usar estas máquinas circulares (Miss Warren Harrison, de sua graça), mas só em 1924 é que uma japonesa chamada Masako Hagiwara inventou a primeira máquina de tricotar doméstica. Um belo pedaço de informação pescado na obra Machine and Hand Knitting Pattern Design da autoria de Kathleen Kinder’s (B. T. Batsford Ltd., London, 1990).

Miss Warren Harrison foi uma das primeiras formadoras em máquinas circulares de tricotar meia e trabalhava para a empresa da sua família. Por volta de finais do século XIX, a ideia de uma mulher trabalhar em casa com uma máquina já começava a ser aceite com alguma naturalidade.

(Machine and Hand Knitting Pattern Design, Kathleen Kinder, página 13)

A pair of knitted socks is among the oldest testimonies of knitted garments and even today the challenge of knitting a sock arouses the curiosity and determination of all knitting enthusiasts.

A sock really is a small piece of knitting engineering and in a knitting machine with two beds you can knit it in the round, just as you would do in hand knitting, producing a seamless knitted tube.

The process is not particularly complicated, but it is a little laborious and the use of the two beds simultaneously prevents the introduction of fantasy stitches, although these can be used if the socks are knitted flat, only with knitting machine’s top bed. From the start of the Industrial Revolution knitted socks were one of the most sought after type of garments, most likely because it was an accessory that could hardly be produced in fabric or animal skin without losing the adaptability to the human body that the knitted fabric offers.

Where there is a will there is a way and one of the first knitting machines to know a domestic version was a circular machine for knitting socks. Around 1878, the English firm Jaeger even had an instructor to train ladies who wanted to use these circular machines (Miss Warren Harrison, so she was called), but it was only in 1924 that a Japanese woman named Masako Hagiwara invented the first domestic knitting machine (a bit of valuable knowledge picked up on Kathleen Kinder’s Machine and Hand Knitting Pattern Design, B. T. Batsford Ltd., London, 1990).

Aletria

Tenho uma predileção especial pelos processos de conceção de uma peça que não começam pelo “desenho”, mas sim pela técnica, o que me leva a duvidar sempre de quem “desenha” para uma técnica que não domina. Mas isto são contas de outro rosário!

A Brother KH940 com que trabalho apresenta já uma memória digital onde estão armazenados uma série de pontos de fantasia que tal como os cartões perfurados usados nos modelos anteriores estão programados de acordo com o recurso à linguagem binária: 0 1, correspondendo os quadrados a branco e a preto a duas posições das agulhas na máquina que são depois interpretadas mecanicamente pelo carro (carriage), no qual se podem selecionar os botões com as diferentes opções para cada família de pontos (jacquard, pontos de malhas acumuladas, malhas passadas, rendados, pontos de liga e meia, pontos com malhas entretecidas e pontos de duplo jacquard).

Embora numa primeira fase de aprendizagem me tenha dado particular prazer explorar as potencialidades deste acervo de quase 1000 pontos de fantasia fico sempre entusiasmada com a descoberta de formas de criar pontos de fantasia com técnicas manuais. E quanto mais simples estas forem, melhor!

Os losangos a castanho-dourado sobre o fundo de amarelo matizado foram desenhados com uma técnica que tira partido de manter as agulhas com a segunda cor fora de trabalho, chamando-as novamente a trabalho a cada duas carreiras e executando manualmente as malhas, transferindo-as de um lado para o outro na direção do desenho que se pretende produzir.

Como uma das regras do tricot à máquina dita que não se devam deixar mais do que cinco agulhas de intervalo entre duas cores, este método permite evitar longas extensões de fio (floats) pelo avesso do trabalho que poderão comprometer a estabilidade da malha produzida. É ainda uma ótima solução para improvisar padrões, introduzir linhas verticais numa peça ou trabalhar com mais do que duas cores ao mesmo tempo.

Só depois de testada a técnica, o desenho e as cores é que a travessa de aletria se materializou: o processo precedeu a inspiração!

I love it when a design process starts with a technique rather than a “drawing”! That is why I am always suspicious of designers who create designs for a technique they do not master. But more of that some other time!

My Brother KH940 knitting machine has a digital memory with a large number of stitches, which, like the punched cards used in the previous machine models, are programmed according to a simple code of binary language: 0 1, in which the white and black squares refer to two different needle positions on the machine, these two different positions are then interpreted mechanically by the carriage, on which a set of buttons can be selected with the different options for each family of stitches (jacquard, tuck, slip, lace, woven or double jacquard stitches). When I first started learning machine knitting, I loved exploring the potential of this collection of almost 1000 stitches, but these days I am more excited to discover ways to create hand manipulated stitches. And the simpler these are, the better!

The golden brown diamond shapes on the tinted yellow background were designed with a technique that takes advantage of keeping the needles with the second color out of work, bringing them back to work every two rows and manually executing the stitches. Since one of the rules of machine knitting dictates that there should be no more than five needles distance between two colors, this method avoids the long floats at the back of the work. It is also a great solution for improvising patterns, introducing vertical lines or working with more than two colors at the same time. Only after testing the technique, design and colors did the image of a large dish of Aletria* materialized before me: process preceded inspiration!

* Aletria is a typical Portuguese Christmas dessert made of milk, sugar, eggs, a rind of lemon, cinnamon and angel hair pasta, served in a large shallow dish and decorated with lines of ground cinnamon forming a diamond shape pattern.

Faiança

Num tempo em que as antiguidades ainda não eram tão cobiçadas como são hoje, o meu pai, que viajava pelo Norte de Portugal com frequência em trabalho, tinha uma grande paixão por velharias e para desespero da minha mãe regressava frequentemente das suas viagens com móveis e peças de faiança tradicionais que ainda hoje adornam a cozinha lá de casa com as suas cores brilhantes e os seus motivos florais e geométricos. A maior parte destas peças pertencerão ao que vulgarmente se designa como cerâmica de Alcobaça, embora nenhuma das peças em casa dos meus pais tenha qualquer tipo de marca, o que não era fora de vulgar.

Eram peças em faiança, uma técnica cerâmica que terá sido inventada na cidade italiana de Faenza (daí o seu nome em português) e que consiste grosso modo na sobreposição de uma camada de chumbo e estanho sobre a peça de barro cru, o que introduzia nas peças uma base branca opaca, próxima do papel, que fazia sobressair as cores dos motivos pintados com argilas coloridas, óxidos ou minerais que já eram usados para a pintura de madeiras ou pedras. Embora se date a “descoberta” destes processos do Renascimento, há vestígios de técnicas similares na China, no Antigo Egito e em ladrilhos da Idade Média.

Este prato, que serviu de inspiração ao padrão usado na camisola e no gorro Faiança, apresenta um padrão geométrico reminiscente dos tartans escoceses. Para tricotar o padrão à máquina, deparei-me com vários desafios: riscas de diferentes espessuras, riscas irregulares, riscas horizontais e verticais, mais do que duas cores em cada carreira (nas máquinas de tricotar só conseguimos trabalhar duas cores em cada carreira) …

As próprias cores tiveram de ser um pouco “domesticadas”, o verde vivo do original foi substituído por um verde mais “velho” para atenuar um pouco o contraste. As riscas foram trabalhadas em diferentes espessuras para manter o ritmo gráfico do padrão e, para criar a ilusão de irregularidade, as riscas verdes e vermelhas foram tricotadas em jacquard, com conjuntos alternados de 4 agulhas a cada 2 carreiras. As riscas verticais foram introduzidas à mão, bordadas por cima das riscas tricotadas na máquina. Estas últimas poderiam ter sido inseridas de acordo com o mesmo método usado para desenhar os losangos da camisola Aletria, mas a quantidade de cores e de riscas tornava o trabalho demasiadamente moroso. O padrão do gorro tem mais elementos, mas o da camisola foi deixado propositadamente mais despojado.

My father, who traveled frequently through the North of Portugal on business, had a great passion for antiques and – much to my mother’s dismay – would frequently come home from his travels with old furniture and traditional pottery pieces that even today are hanging in my parent’s kitchen exhibiting their bright colors and their floral and geometric motifs. These earthenware pieces, which in Portuguese are named after the Italian town where the particular technique in which they are produced was invented – “faiança” for Faenza – present strong colors on a clear background thanks to a layer of lead and tin that creates an opaque white layer, similar to paper, which highlighted the colors of the motifs painted with colored clays, oxides or minerals that were already used for painting wood or stones. Although the “discovery” of this technique is dated from the Renaissance period, there are traces of similar techniques in China, the Ancient Egypt as well as tiles from the Middle Ages.

The particular plate that inspired the pattern used on the Faiança sweater and hat is reminiscent of Scottish tartans and to translate it to machine knitting I came across several challenges: different thickness stripes, irregular stripes, horizontal and vertical stripes, more than 2 colors in each row (in machine knitting we can only work 2 colors in each row)… The colors too had to be slightly tamed, the original bright green was replaced by a darker shade to soften the contrast a little. The stripes were worked in different thicknesses to maintain the graphic rhythm of the pattern and, to create the illusion of irregularity, the green and red stripes were knitted in jacquard, alternating sets of 4 needles every 2 rows. Vertical stripes were hand embroidered over the machine knitted stripes which could have been inserted according to the same method used to draw the diamond shapes in the Aletria sweater, but the amount of colors and stripes made the work too time consuming. The hat has more elements, but the sweater was left intentionally simplified.

Hikaru Noguchi

Hikaru Noguchi, Darning. Repair Make Mend, Quickthorn, 2019.

Darning. Repair Make Mend é uma obra que aborda o interesse da designer Hikaru Noguchi pelas técnicas de recuperação de peças de vestuário dentro da lógica dos chamados remendos criativos ou visíveis, inspiração que atribui à designer britânica Rachael Matthews.

Hikaru Noguchi chegou a Inglaterra em 1989 vinda do Japão para prosseguir estudos em design têxtil depois de ter concluído um curso de Design Gráfico na Universidade Musashino em Tóquio. Completados os estudos na Universidade de Middlesex, permaneceu em Inglaterra onde desenvolveu uma série de colaborações na área do design têxtil com algumas lojas e designers britânicos como Tom Dixon, Top Shop, Barneys, Browns, Paul Smith, …

O seu livro aborda a técnica dos remendos sob um registo pessoal, começando por convocar memórias familiares e sublinhar o potencial de improvisação das técnicas que introduz. Na realidade, os remendos criativos oferecem uma ampla margem de inventividade e se a obra de Noguchi aponta soluções abre sobretudo o caminho para a recriação. Esta é uma daquelas áreas em que a utilização do termo criatividade é realmente um convite à experimentação e à subversão de todas as regras e nisso reside uma grande parte do seu encanto.

Darning. Repair Make Mend apresenta uma grande variedade de conteúdos organizados em:

* “darning techniques” (técnicas de remendo), numeradas de 1 a 12, tutoriais ilustrados com fotos e desenhos para cada uma das técnicas propostas;

* capítulos (de 1 a 10) onde são no fundo apresentados exemplos vários de intervenções em diferentes peças de roupa (de tecido ou de malha);

* 2 momentos de “inspiração”; um primeiro (“Alternatives to the darning mushroom”) que recupera o registo memorialista da introdução com uma breve nota das recordações familiares ligadas à tradição de remendar roupas que serve de pretexto para a apresentação das alternativas aos suportes para os remendos, e um outro (“The links between crafts and science”) que evoca o encontro entre a artista têxtil Celia Pym e o neurologista Richard Wingate no âmbito do estudo Parallel Practices que procurou investigar os efeitos psicológicos da prática da dissecação anatómica nos estudantes de medicina, propondo com a presença de Celia no laboratório que os alunos trouxessem peças de vestuário a precisarem de remendos e se dessem conta das semelhanças entre o trabalho de Celia e o seu próprio: remendar roupas, remendar corpos.

As numerações de cada um dos casos apresentados dentro dos capítulos, a par das numerações dos outros conteúdos, torna o livro um pouco confuso, mas, excetuando esse aspeto, a obra apresenta uma boa compilação de situações embora a grande diferença entre os vários casos se prenda mais com os materiais e com os suportes utilizados do que com as técnicas propostas.

No seu canal de IGTV no Instagram, a designer japonesa promove muitas vezes sessões em livestreaming com várias das técnicas que são ilustradas no livro e durante as quais se pode acompanhar os vários processos que propõe em tempo real e consultar um número ainda mais vasto de exemplos do seu trabalho.

As its title indicates, Darning. Repair Make Mend is a work that addresses Japanese designer Hikaru Noguchi’s interest for the techniques of upcycling garments within the logic of the so-called creative or visible mends, inspiration that she attributes to the British designer Rachael Matthews.

Hikaru Noguchi arrived in England in 1989 from Japan to pursue studies in textile design after completing a course in Graphic Design at Musashino University in Tokyo. After her studies at Middlesex University, she stayed in England where she developed a series of collaborations in the field of textile design with British brands and designers such as Tom Dixon, Top Shop, Barneys, Browns, Paul Smith,…

In her book Noguchi recalls family memories and underlines the potential for improvisation within the techniques she introduces. Creative mending opens up for a range of inventiveness and if Noguchi’s work points out solutions it mainly shows the way to subverting the rules. This is one of those areas in which the use of the term creativity is really an invitation to experiment and therein lies a large part of its charm.

Darning. Repair Make Mend features a wide variety of content organized into:

* “Darning techniques”, numbered from 1 to 12, illustrated tutorials with photos and drawings for each of the proposed techniques;

* chapters (from 1 to 10) where various examples of interventions in different pieces of clothing (fabric or knit) are presented;

* 2 moments of “inspiration”; a first one (“Alternatives to the darning mushroom”) with a brief note on family memories that serves as a pretext for presenting alternatives to the supports used for mending, and a second one ( “The links between crafts and science”) that evokes the meeting between textile artist Celia Pym and neurologist Richard Wingate for the Parallel Practices study that sought to investigate the psychological effects of anatomical dissection on medical students, where the presence of Celia in the laboratory and her request that students should bring pieces of clothing in need of mending served as a device to show the similarities between Celia’s work and their own: mending clothes, mending bodies.

The numbering of each of the cases presented within the chapters, together with the numbering of the other contents, makes the book a little confusing, but, except for this, the work presents a good compilation of situations and techniques although the great difference between the various cases is more attached to the materials than to the suggested techniques.

On her IGTV channel on Instagram, the Japanese designer often promotes livestreaming sessions with several of the techniques that are illustrated in the book and during which you can follow her various processes in real time and consult an even wider number of examples.

Thérèse de Dillmont

Thérèse de Dillmont, L’Encyclopédie des Ouvrages de Dames, 1886.

A Encyclopédie des Ouvrages de Dames é uma daquelas obras intemporais que ainda hoje servem de inspiração e são uma fonte de referência valiosa. Examinar uma das suas edições originais [a minha tem a indicação de “Nouvelle Édition revue et augmentée” (“Nova edição, revista e aumentada”) mas não está datada], não pode deixar de nos maravilhar não só pela quantidade de conhecimentos elencados (verdadeiramente enciclopédica) mas também pela sua qualidade de impressão, particularmente notória no caso das imagens, de que a obra está ricamente recheada.

A sua autora, a austríaca Thérèse de Dillmont, nascida em 1846 e falecida em 1890, foi na sua curta vida o paradigma da empreendedora feminina de que o final do século XIX conheceu alguns exemplos.

Como muitas jovens do seu tempo e da sua classe social, Thérèse aprendeu lavores e começou por criar com uma irmã, em Viena, uma escola dedicada ao bordado que abandonou para viajar para França onde veio a escrever a obra pela qual é mais conhecida, a Enclycopédie des Ouvrages de Dames, editada em seu nome em 1886 com o patrocínio da DMC, Dollfus-Mieg et Compagnie, a empresa sediada em Mulhouse na região francesa da Alsácia que desde 1746 até hoje se dedica à produção de todo o tipo de linhas e fios para bordados e costura.

Thérèse foi igualmente proprietária de uma cadeia de lojas nalgumas das mais importantes capitais da Europa (Viena, Londres, Paris e Berlim) e uma das pioneiras no mundo dos lavores femininos que começavam então a estabelecer-se como uma área de lazer importante graças não só a uma burguesia endinheirada e ociosa como também à melhoria das condições de vida em ambiente doméstico, com progressos como o aquecimento central e a iluminação elétrica a abrirem um espaço de conforto aliciante para a prática deste tipo de trabalhos mesmo depois do pôr do Sol.

Atualmente, a obra de Dillmont é particularmente citada graças às poucas páginas que dedica aos remendos de peças de malha. São meia dúzia de ilustrações que permanecem como um testemunho fora de vulgar de práticas ancestrais que hoje voltam a ganhar pertinência. Nas edições disponíveis no Internet Archive, estas indicações encontram-se nas páginas 212-214 da edição francesa; e nas páginas 294-298 da edição inglesa.

A sua obra tinha sido antecedida, em 1882, pelo The Dictionary of Needlework (1882) das britânicas Sophia Frances Anne Caulfield e Blanche Saward, uma verdadeira bíblia na sua área.

Embora as duas obras tenham beneficiado de um regime de direitos de autor bastante liberal que permitia a utilização sem restrições de conteúdos editados em publicações periódicas é difícil imaginar o esforço hercúleo que a sua criação terá implicado e o papel extraordinário desempenhado pelas suas autoras. Segunda a obra Hedonizing Technologies: Paths to Pleasure in Hobbies and Leisure, de Rachel P. Maines, o mercado das edições dedicadas aos lavores femininos viria a atingir uma verdadeira dimensão global por volta de 1920.

The Encyclopedia of Needlework is one of those timeless works that still serve as inspiration and are still today a valuable reference book. Examining one of its original editions, mine has the indication “Nouvelle Édition revue et augmentée” (“New edition, revised and enlarged”) although it is not dated, cannot fail to amaze us not only for the amount of knowledge listed (truly encyclopedic) but also for its print quality, particularly notable in the case of its many images illustrating all sorts of needlecraft skills.

Its Austrian author, Thérèse de Dillmont, born in 1846 and deceased in 1890, was in her short life the paradigm of the female entrepreneur of which the end of the 19th century left some examples. Like many young women of her time and social status, Thérèse learned all sorts of needlecraft skills and started by creating a school for these skills with her sister in Vienna. Later she left to travel to France where she came to write the work for which she is best known, Enclycopédie des Ouvrages de Dames, published under her name in 1886 and sponsored by DMC, Dollfus-Mieg et Compagnie, the company based in Mulhouse in the French region of Alsace that from 1746 until today is dedicated to the production of all types of threads for embroidery and sewing.

Thérèse was also the owner of a chain of stores in some of Europe’s most important capitals (Vienna, London, Paris and Berlin) and one of the pioneers in the world of needlecraft hobbies that became established as an important leisure activity thanks not only to an idle and prosperous middle-class but also to the improvement of household comfort, such as central heating and electric lighting that made it comfortable to work long hours and into the night.

Today, Dillmont’s work is particularly quoted thanks to the few pages she devotes to mending knitted items. They are a few illustrations that remain an unusual testimony of ancestral practices that are now gaining relevance before the need to adopt more environmentally conscious consumer habits. On the Internet Archive, you can check these chapters on pages 212-214 of the French edition and pages 294-298 of the English edition.

In 1882, before L’Encyclopédie come out, The Dictionary of Needlework (1882), by British authors Sophia Frances Anne Caulfield and Blanche Saward, was published, a true bible of sorts. Although both works benefited from a very liberal copyright regime that allowed the unrestricted use of content published in periodicals, it is difficult to imagine the Herculean effort that its creation will have involved, and the extraordinary role played by its authors. According to Hedonizing Technologies: Paths to Pleasure in Hobbies and Leisure, by Rachel P. Maines, the market for books dedicated to needlecraft reached a true global dimension around 1920.

Make Do and Mend

Imperial War Museum (Board of Trade), Make Do and Mend, 2007.

As preocupações com a sustentabilidade ambiental que dominam a nossa época têm levado entre outros epifenómenos à revalorização de práticas caídas em desuso como a de remendar peças de roupa de forma a prolongar ao máximo o seu tempo de vida! A recuperação destas práticas, até há relativamente pouco tempo bastante comuns, tem uma das suas maiores fontes de inspiração no período da Segunda Guerra Mundial, durante o qual nas Ilhas Britânicas foi implementado um programa de racionamento de vestuário alicerçado numa campanha de propaganda que encontra hoje um estranho e inquietante eco no nosso momento histórico.

O programa Make Do and Mend (algo que se poderia traduzir como “aproveitar e remendar”) aliava noções de frugalidade e estoicismo com o apelo a uma certa inventividade. Tratava-se de remendar e reaproveitar peças de vestuário, mas também de o fazer com um certo sentido de estilo e criatividade!

Assim, com o objetivo de promover hábitos de poupança e de reaproveitamento das escassas peças de vestuário disponíveis, o Board of Trade britânico lançou então, a partir do outono de 1942, o programa Make Do and Mend ao abrigo do qual foram produzidos materiais promocionais como cartazes, publicações e uma série de panfletos com instruções práticas protagonizadas por uma personagem feminina de nome Mrs Sew and Sew que dava vários conselhos para o conserto de roupas ou aproveitamento de tecidos para os mais variados fins práticos.

Os tecidos eram fundamentais para a produção de uniformes militares e, ao reduzir a produção de roupa para civis, as fábricas podiam dedicar o seu esforço à produção de guerra. O racionamento de vestuário foi decretado a partir de 1 de junho de 1941, antecedido pelo racionamento de bens alimentares em 1940, e implementado através de um sistema de cupões que podiam ser trocados pelos bens necessários a cada família. O racionamento manteve-se até 1949, cinco anos depois de terminado o conflito.

Durante os anos da crise financeira no início deste século, o Imperial War Museum não só reeditou (em 2007) os diferentes folhetos produzidos durante a guerra em formato de pequeno livro de capa dura e numa versão fac-similada como também recuperou esta personagem e criou em seu nome uma conta na plataforma Twitter com alguns conselhos que, perante a perda de qualidade de vida que muitos estavam a experienciar, voltavam a fazer sentido.

No que diz respeito às peças de roupa de malha, os conselhos iam desde a advertência de remendar eventuais danos antes que o estrago se revelasse mais difícil ou mesmo impossível de concertar, reservar peças eventualmente feltradas pelas lavagens de forma a usar cortes das mesmas para reforçar mangas e calças, até ao desfazer das peças para usar o fio em novos projetos, para além de conselhos genéricos sobre a melhor forma de lavar peças tricotadas e protegê-las da voracidade das traças.

Como se podia ler na capa de um dos folhetos: “As malhas podem envelhecer com graciosidade. Podem continuar a ser macias, quentes e coloridas mesmo depois de usadas e lavadas várias vezes. Mas, como avisa Mrs Sew-and-Sew, deve-se cuidar bem delas de forma que não percam a forma.”

A par das competências nas áreas da costura e do tricot, remendar era visto como uma competência absolutamente fundamental de forma a permitir que as peças de vestuário durassem o máximo de tempo possível. O fio para remendos não estava sujeito a racionamento e inicialmente era vendido em novelos até as autoridades se aperceberem que as pessoas o compravam para tricotar peças de roupa e obrigarem a que fosse vendido em pequenas quantidades, enrolado em volta de uma pequena cartela. Um dos panfletos da época sobre remendos ostentava mesmo o mote:

“um bom remendo é uma verdadeira medalha de honra!”

Os tecidos, calçado e até peças de mobiliário produzidos ao abrigo do programa de racionamento eram identificados com o logo CC41, da autoria do designer Reginald Shipp, que fazia referência não só ao ano em que o racionamento entrara em vigor como ao termo “controlled commodity” (produto controlado).

Recentemente, numa homenagem particularmente emocional a este período difícil da História britânica, o designer inglês Patrick Grant inspirou-se no símbolo CC41 para criar o logo da sua original marca de vestuário; Community Clothing, um projeto pioneiro na sua missão de devolver ao tecido industrial britânico o lugar de excelência que já foi o seu, produzindo nas fábricas britânicas de uma forma ética um conjunto de peças intemporais a preços acessíveis graças a uma estratégia de controlo de custos.

Our present concerns with environmental sustainability have brought mending back in an effort to maximize our clothes’ life span! One of the main inspirations for the mending trend has been the Make Do and Mend program created in Britain during the Second World War, a clothing rationing program implemented through an advertising campaign that echoes strangely with our historical moment.

Make Do and Mend combined notions of frugality and stoicism with the call for a certain inventiveness. It was about mending and reusing garments, but also about doing it with a certain sense of style and creativity!

Fabrics were necessary for the production of military uniforms and by reducing the production of clothing for civilians factories could devote their effort to war production. Clothes rationing began in June 1, 1941, food rationing had started in 1940, and implemented through a system of coupons. Rationing continued until 1949, five years after the conflict ended.

The Make Do and Mend program was launched from the autumn of 1942 by the British Board of Trade with the aim of promoting saving habits and reusage of the scarce garments available. It consisted of a series of promotional materials such as posters, booklets and a series of pamphlets with practical instructions carried out by a female character named Mrs Sew and Sew who gave various advice for repairing clothes or using fabrics for a variety of practical purposes. During the years of the recent financial crisis, the Imperial War Museum not only reissued (in 2007) the different leaflets produced during the war as a facsimile version in a small hardcover book but also recovered the character of Mrs Sew and Sew and created an account on Twitter on her behalf with some advice that, given the loss of quality of life that many were experiencing, was again making sense.

Regarding knitted garments, the advice on the Make Do and Mend pamphlets ranged from warnings to mend any damage before it got out of control, to saving items eventually felted by washing or use in order to turn them into patches to reinforce sleeves and pants, to frogging knitted pieces in order to use the thread in new projects, as well as generic advice on how to wash knits and protect them from the voracity of moths. As you could read on the cover of one of the brochures: “Woollies can grow old gracefully. They can keep their shape. They can go on being soft and warm and colorful even after long use and repeated washings. “But,” warns Mrs. Sew-and-Sew, “you have to take care of them properly to get the best wear”.

Meanwhile, knitting became a very popular pastime during the conflict. Most woolen yarns were subject to rationing, but yarns with less than 16% animal fiber were not restricted. Knitting for those in the battle front was considered a valuable contribution to the war effort and organizations like Women’s Voluntary Service and Women’s Institutes often organized voluntary knitting meetings.

Mending was regarded as an absolutely fundamental skill in order to make garments last as long as possible. Mending yarn was not subject to rationing and was initially sold in skeins until authorities realized that people bought it to knit garments and determined it should be sold in small quantities. One of Make Do and Mend pamphlets carried the motto: “a good patch is a real badge of honor”. Fabrics, shoes and pieces of furniture produced under the rationing program were identified with the CC41 logo, designed by Reginald Ship, which made reference not only to the year when rationing came into force but to the term “controlled commodity”.

Recently, in a particularly emotional tribute to this difficult period in British history, the English designer Patrick Grant was inspired by the CC41 symbol to create the logo to his clothing brand: Community Clothing, a pioneering project in a mission to bring British textile industry back into the limelight, producing timeless garments at affordable prices thanks to a cost control strategy that doesn’t take the usual shortcut of poorly paying the work force.

kintsugi

Remendar / Darning

Passajar, cerzir, pontear, remendar, … o léxico português é generoso para nomear a recente redescoberta da arte de remendar, quer tecidos quer malhas. Remendar as nossas próprias roupas caiu em desuso perante o baixo preço da maior parte do vestuário, no entanto, numa altura de apelos redobrados a um consumo consciente quando os excessos da indústria da moda revelam a lamentável exploração laboral que os sustenta e se constituem como uma ameaça considerável para a sustentabilidade ambiental, a urgência de retomar estes velhos hábitos impõe-se com redobrada evidência.

Os Japoneses cultivam desde há séculos o conceito de kintsugi, a arte de recompor uma peça partida de cerâmica, recompondo a peça original de forma a que esta ostente assumidamente as suas cicatrizes. É um conceito que decorre da filosofia japonesa de wabi-sabi, que propõe a aceitação da imperfeição, do defeito e do transitório e se inspira na noção budista dos três alicerces da existência: impermanência (anicca), sofrimento (dukkha) e o não-eu (anatta). Trata-se no fundo de uma filosofia do despojamento, e aí reside o seu maior desafio numa época histórica em que o culto do indivíduo e da realização de todas as suas necessidades se tem vindo a afirmar…

No entanto, a frugalidade implícita nesta filosofia oriental não é de todo estranha à nossa condição de ocidentais, sendo mesmo a atitude por defeito até ao advento do vestuário produzido em grandes quantidades e a preços muito baixos que a chamada “globalização” económica introduziu nos nossos hábitos de consumo.

Durante a Segunda Guerra Mundial, mais precisamente em 1943, o Ministry of Information britânico publicou um guia recentemente reeditado (em 2007) pelo Imperial War Museum intitulado Make, Do and Mend com uma série de conselhos destinados a promover a longevidade do escasso vestuário a que os britânicos teriam acesso durante o conflito. Este livrinho contém ensinamentos que vão desde instruções para a lavagem das roupas, sugestões para o reaproveitamento de peças já fora de uso (a que hoje chamaríamos recycling ou upcycling), indicações sobre como guardar as peças de roupa de forma a protegê-las das traças (“The moth menace”) e da humidade, como tratar do calçado de forma a prolongar ao máximo o seu uso, bem como uma série extensa de conselhos para remendar peças ou reforçar as suas zonas mais frágeis, quer de roupas em tecido quer de peças em malha.

Ainda antes disso, Thérèse de Dillmont, a autora austríaca da Encycopedie des Ouvrages des Dames, publicada pela primeira vez pela DMC em 1886, tinha já dedicado nesta sua obra algumas páginas à reparação de peças de malha e os seus desenhos são uma referência valiosa e um testemunho histórico de práticas que já seriam à época verdadeiramente ancestrais.

Mais recentemente, artesãs como Celia Pym, Hikaru Noguchi, Flora Collingwood-Norris, Tom of Holland, Molly Martin e Kate Sekules, a mentora do #mendmarch, um evento organizado em torno da comunidade do Instagram para promover e divulgar a prática dos remendos criativos, têm dado uma contribuição valiosa a par de outros criativos e artesãos no sentido de sensibilizar os consumidores para a adoção de práticas regulares de poupança, no sentido de construir não só uma agenda de sustentabilidade ambiental mas acima de tudo uma agenda de sustentabilidade social, associando a prática do remendo de peças de vestuário ao respeito devido à mão de obra que a confeção implicou.

Darning, stitching, mending,… so many words to name the rediscovery of the art of mending, whether fabrics or knits. Patching our own clothes has fallen out of our everyday habits due to the low price of most wearables, however, at a time when we are asked to consume consciously and the excesses of the fashion industry reveal the regrettable labor exploitation that sustains them we need to resume these old habits.

The Japanese have been cultivating the concept of kintsugi for centuries, the art of putting back together a broken ceramic piece without hiding it scars. It is a concept that stems from the Japanese aesthetics of wabi-sabi, which propounds the acceptance of imperfection and transience and is inspired by the Buddhist notion of the three pillars of existence: impermanence (anicca), suffering (dukkha) and the absence of self (anatta). It is at its core a philosophy of dispossession, and therein lies its greatest challenge in a time in history when the cult of the individual and the fulfillment of all its needs has taken over more colectivist concerns.

However, the frugality implicit in this Eastern philosophy is not at all foreign to our condition as Westerners, being the default attitude until the advent of clothing produced in large quantities and at very low prices that the so-called economic “globalization” brought into our consumption habits. During World War II, more precisely in 1943, the British Ministry of Information published a guide recently reissued (in 2007) by the Imperial War Museum entitled Make, Do and Mend with a series of advice aimed at promoting the longevity of the scarce clothing to which the British would have access during the conflict. This booklet contains lessons ranging from instructions for washing clothes, suggestions for reusing items that are no longer in use (what we would now call recycling or upcycling), instructions on how to store garments in order to protect them from moths (“The moth menace”) and humidity, how to take care of footwear in order to prolong its use to the maximum, as well as an extensive series of advice for mending pieces or reinforcing their most fragile areas, whether woven or knitted. Long before that, Thérèse de Dillmont, the Austrian author of the Encycopedie des Ouvrages des Dames, first published by DMC in 1886, had already dedicated a few pages in her book to the repair of knitwear and her drawings are a valuable reference and a historical testimony to the practices that were already ancestral at the time. More recently, artisans like Celia Pym, Hikaru Noguchi, Flora Collingwood-Norris, Tom of Holland, Molly Martin and Kate Sekules, the mentor of #mendmarch, an event organized around the Instagram community to promote and publicize the practice of creative mending, have given a valuable contribution alongside other creatives and artisans to promote the adoption of regular mending practices, in order to build not only an environmental sustainability agenda but above all a social sustainability agenda, associating the practice of patching garments to the respect due to the workmanship that their production implied.

A medida e a gestão do tempo

Qualquer pessoa que se dedique a uma atividade artesanal depara-se rapidamente com a inexorável espessura do tempo. Na pequena escala de produção que é a dos artesãos, o tempo que passa assume uma materialidade que dificilmente chega a ser pressentida noutros contextos de trabalho, embora esteja inevitavelmente presente em todos eles, e isto acontece porque o artesão cobre muitas vezes toda a cadeia de produção e é em geral o único responsável pela execução de peças do princípio ao fim do processo ou o supervisor de uma pequena cadeia de produtores.

Nos alvores do movimento Arts and Crafts em Inglaterra, John Ruskin encarava o trabalho manual e artesanal como um ideal de trabalho dignificante, por oposição ao trabalho fabril em que a segmentação de tarefas produzia uma forma de alienação do trabalhador, que perdia assim não só a noção do todo como a noção do tempo.

No passado dia 17 de maio, na última sessão das Creative Mornings do Porto, a Alice Bernardo fez a apresentação do seu Saber Fazer (um projeto dedicado à formação de todos os curiosos que queiram aprender a produzir e a transformar fibras naturais como a lã, a seda e o linho bem como aventurar-se na produção de pigmentos naturais) e para demonstrar a especificidade do seu trabalho explicou que a raiz da rubica tinctorium, uma das fontes ancestrais do cor vermelha na tinturaria natural, demora 10 anos a atingir o ponto ideal para ser usada como pigmento: 3 anos a crescer dentro da terra, 7 anos de secagem. Embora a apresentação da Alice se tenha concentrado na matéria, concluindo mesmo com a pequena provocação de se afirmar como uma “materialista”, o que me ocorreu foi que a tradução da matéria em tempo que ela fizera poderia constituir o verdadeiro fulcro da atividade de todos os que voltam às raízes (literal e metaforicamente) para reencontrar a substância primeira do labor, do fazer…

Num tempo em que como já foi mil vezes repetido “sabemos o preço de tudo e não sabemos o valor de nada”, retomar a consciência do tempo, o único recurso rigorosamente finito com o qual todos temos de lidar, torna-se fundamental e é sem dúvida a matéria-prima de toda a atividade artesanal enquanto processo por excelência da procura de uma certa forma de depuração…

Tendo sido toda a vida uma péssima gestora de tempo e sofrendo até de alguma desconfiança em relação a propostas e sugestões para resolver o problema, foi como artesã que deixei de poder fugir à materialidade do tempo e a sua interiorização se impôs como uma necessidade vital e não apenas como um capricho de uma “estrutura” ou “entidade” que me fosse estranha, exterior a mim e às minhas necessidades…

Digamos que imperara em mim até aí uma certa noção infantil do tempo, ou seja, uma certa sensação de invencibilidade em relação ao tempo e à sua passagem. Não havia sentido de urgência que me apanhasse desprevenida! Tudo podia esperar… Tinha o tempo todo à minha frente!

Mesmo agora, a minha incontrolável preguiça obriga-me a travar esta luta diariamente. Juntar os pequenos pedaços de trabalho que somados farão surgir o “produto”: projetos, experiências, amostras, encomendas, o último botão, as etiquetas, as pontas soltas… Empurrar persistentemente com os cornos cada uma das etapas que me impedem de ver logo, logo o resultado final, tal como este se me apresentou – qual visão profética – na minha pobre cabeça! O que custa uma pessoa crescer devagar…

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MEASURING AND MANAGING TIME

Anyone working in crafts comes very quickly into contact with the relentless nature of time. In the small scale production typical of any craft time takes a role much more central than in any other activity, although it is obviously present in all walks of life. This happens because the crafter covers the whole production chain and is generally the only one responsible for his or her work from beginning to end or even supervises a small chain of producers.

At the beginning of the Arts and Crafts movement in England, John Ruskin was very keen to point out that handicraft work presented a form of dignified labor, as opposed to factory work in which the segmentation of tasks produced a kind of alienation of the worker that thus lost both the notion of the whole as well as the notion of time.

A short while ago, on May 17th at the latest Porto’s Creative Mornings sessions, during the presentation by Alice Bernardo (whose project, Saber Fazer, revolves around training newcomers in the lost arts of producing flax, silk and wool as well as natural pigments), she mentioned as an example of how different her work experience could be from that of a lot of other people the fact that the root rubica tinctorium, one of the oldest sources of red in natural dyeing practices, took 3 years to form underground and another 7 years to dry in order to be used as a pigment. Alice’s presentation was centered around matter and led her to conclude with a certain hint of provocation that she was a “materialist”, but what struck me as curious was her translation of “matter” into “time” which made me think that time is at the true core of the work practice of all crafters, whether they are going back to (their) roots literally or metaphorically, since they are looking for the first substance of labor, of making…

In a time that, as it has been said so often, “we know the price of everything and the value of nothing”, to regain awareness of time, the only resource strictly limited with which we all have to deal, becomes fundamental and is undoubtedly the most important element of all handicraft as the primary process to search for a certain kind of purification…

Having been all my life a terrible time manager and even regarding all suggestions to solve the problem with a certain degree of suspicion, it was as a crafter that I had to stop running away from the materiality of time and interiorizing it as a vital necessity and not just a whim imposed by a strange and exterior “structure” or “entity” unaware of my needs…

Let’s say that until then I had lived under a certain childish notion of time, a certain feeling of invincibility about time and its passing. I wasn’t caught unattended by any urgency of time! Everything could wait… I had all the time in the world!

Even now, my uncontrollable laziness forces me to fight this battle day in, day out. Put together the small pieces of work that once you add them up will bring your project into existence: drafts, experiments, samples, orders, the last button, the labels, all the loose ends… Push forward with my little horns each one of these stages that stop me from immediately seeing the final result, just as it presented itself to me – like a prophetic vision – in my poor mind! Aaach! It’s hard being a slow learner…